COMEÇOU A ENVIÁ-LOS DOIS A DOIS

(Mc 6, 7-13)

 

7 Chamou a si os Doze e começou a enviá-los dois a dois. E deu-lhes   autoridade sobre os espíritos impuros. 8 Recomendou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser um cajado apenas; nem pão, nem alforje, nem dinheiro no cinto. 9 Mas que andassem calçados com sandálias e não levassem duas túnicas. 10 E dizia-lhes: ‘Onde quer que entreis numa casa, nela permanecei até vos retirardes do lugar. 11 E se algum lugar não vos receber nem vos quiser ouvir, ao partirdes de lá, sacudi o pó de debaixo dos vossos pés em testemunho contra eles’. 12 Partindo, eles pregavam que todos se arrependessem. 13 E expulsavam muitos demônios, e curavam muitos enfermos, ungindo-os com óleo”.  

 

 

São Beda escreve: “Bondoso e clemente, nosso Senhor e Mestre não regateia seu poder a seus servos e discípulos, posto que assim como Ele curava todo desfalecimento e toda enfermidade, deu também a seus apóstolos poder para curá-los: ‘E havendo convocado aos doze’, etc. Porém, há grande distância entre dar e receber. O Senhor realizava com o seu próprio poder tudo o que fazia; no entanto, quer que seus discípulos, ao realizarem algo,  confessem sua debilidade e o poder do Senhor dizendo: ‘Em nome de Jesus, levanta e anda” (In Marcum 2, 24), e: “Manda de dois a dois aos apóstolos, para que estejam mais prontos; porque, como disse o Eclesiástico, melhor é que sejam dois juntos que um só. Se houvesse enviado mais de dois, não haveria sido suficiente o número deles para ir a tantos lugares” (Teofilacto), e também: “Manda de dois a dois a seus discípulos a pregar, porque são dois os preceitos da caridade: o amor de Deus e do próximo, e não pode existir esta se não se dá em ambos os termos. Deste modo nos insinua que o que não tem caridade para os demais, não deve de modo algum tomar o cargo e ofício de pregar. ‘E lhes ordenou que nada levassem” (São Gregório Magno, Homilia in Evangelis, 17), e ainda: “Aquele que prega deve confiar tanto em Deus, ao ponto de estar seguro de que não lhe faltará o necessário para a vida, mesmo que ele não possa procurá-lo; posto que não deva ocupar-se menos das coisas eternas, ocupando-se das temporais” (São Beda, in Marcum 2, 24), e: “O Senhor lhes impôs também este preceito, para que por sua parte manifestasse quão distante deles estava o desejo da riqueza” (Pseudo-Crisóstomo, vict. ant. e cat. in Marcum), e também: “Ensinava-lhes assim, que não devem desejar nenhum presente ou donativo, porque vendo que os apóstolos nada tinham, confiassem neles os que os ouviam pregar sobre a pobreza” (Teofilacto), e ainda: “Ou, porque acrescenta o Senhor, segundo São Mateus: ‘ Porque o que trabalha merece o seu sustento’ (Mt 10, 10), nos manifesta claramente, porque não queria que eles possuíssem nem levassem nada consigo; não porque a vida não tenha as suas necessidades, mas porque deste modo, os crentes a quem anunciassem o Evangelho haveriam de provê-los do necessário...” (Santo Agostinho, De Consensu Evangelistarum, 2, 30), e: “O não levar calçado nem báculo, segundo São Mateus e São Lucas, manifesta um estado de grande perfeição, e o levar uma e outra coisa, como disse São Marcos, é uma licença dada por causa da fragilidade humana” (Pseudo-Crisóstomo, vict. ant. e cat. in Marcum), e também: “Por alforje – em sentido alegórico – se há de entender os trabalhos da vida; pelo pão, os prazeres temporais; pelo dinheiro no cinto, a sabedoria que se oculta; porque o que recebeu a sabedoria não deve desejar ocupar-se com a carga dos negócios temporais, nem consumir-se em desejos carnais, nem ocultar o talento que lhe foi dado. ‘Advertia-lhes: Onde quer que entreis’. Nestas palavras lhes dá o preceito geral da constância, para que observem as leis da hospitalidade que receberem, fazendo-lhes ver que esta hospitalidade é alheia ao que anuncia o reino dos céus, o andar de casa em casa”     (São Beda, in Marcum 2, 24), e ainda:  “Significa a graça do Espírito Santo, pela qual descansamos dos trabalhos e recebemos a luz e a alegria espiritual” (Teofilacto), e: “Aqui se manifesta que este costume da Santa Igreja de ungir os endemoninhados e a qualquer enfermo com óleo consagrado pela bênção pontifical, foi introduzido pelos próprios apóstolos” (São Beda, in Marcum 2, 24).

 

Edições Theologica comenta esse trecho do Evangelho de São Marcos.

VV. 8 e 9. Jesus Cristo exige que o pregador esteja livre de qualquer espécie de ataduras no momento de pregar o Evangelho. O discípulo, que tem o encargo de levar o Reino de Deus às almas mediante a pregação, não deve pôr a sua confiança nos meios humanos, mas na Providência de Deus. Aquilo de que há de necessitar para viver dignamente como arauto do Evangelho deverá ser procurado pelos próprios beneficiários da pregação, pois o operário é digno de sustento (cf. Mt 10, 10).

Como já foi citado, São Beda comenta: “Tanta deve ser a confiança em Deus daquele que prega que há de estar seguro de que não lhe faltará o necessário para viver, ainda que ele o não possa procurar; visto que não se deve ocupar menos das coisas eternas, por se ocupar das temporais”.

V. 13. São Marcos é o único Evangelista que fala de uma unção com azeite aos doentes. O azeite utilizava-se frequentemente para curar as feridas – cf. Is 1, 6; Lc 10, 34 -, e os Apóstolos empregam-no também para curar miraculosamente as doenças corporais, segundo o poder que Jesus lhes conferiu. Daí o uso do azeite como matéria do sacramento da Unção dos Doentes, que cura as feridas da alma e inclusivamente as do corpo, se convém. Como ensina o Concílio de Trento – Doctrina de sacramento extremae unctionis, cap. 1 – há que ver “insinuado” neste versículo de São Marcos o sacramento da Unção dos Doentes, que será instituído pelo Senhor, e mais tarde “recomendado e promulgado aos fiéis pelo Apóstolo São Tiago” (cf. Tg 5, 14 ss.).

 

São Marcos 6, 7-13 é comentado pelo Pe. Gabriel de Santa Maria Madalena.

Há, entretanto, alguns que recebem missão especial de evangelizar: os profetas e os apóstolos de quem falam a primeira leitura e a passagem evangélica. É Deus quem os chama, escolhendo-os com absoluta liberdade dentre todas as categorias de pessoas, com especial preferência pelas mais humildes e simples. Eis Amós, escolhido não entre os profetas de profissão, mas entre os pastores: “O Senhor me tomou enquanto pastoreava meu rebanho e me disse... ‘Vai, profetiza contra o meu povo de Israel” (Am 7, 15). Deus o envia a uma terra estranha a pregar a justiça; torna-se malquisto pelo sacerdote do lugar, que o tenta expulsar. Mas Amós não se dobra; forte e consciente da vocação divina que lhe impõe falar com toda a liberdade, não busca o próprio interesse, não quer agradar aos homens, mas somente levar-lhes a Palavra de Deus.

Eis os apóstolos escolhidos por Jesus, entre a gente humilde do povo, feitos participantes de sua missão e autoridade: “Chamou os doze e começou a enviá-los, dois a dois”, com o encargo de pregarem a conversão e com o poder de expulsar demônios e curar doentes. Deles exige Jesus o mais simples e desinteressado comportamento: nada levar, para a viagem, que não seja estritamente necessário; não se preocupar com reservas para o próprio sustento: entregar-se, ao contrário, à providência do Pai celeste, que deles cuidará mediante a hospitalidade, mais ou menos generosa, oferecida nos lugares visitados. Se as condições e costumes da sociedade moderna não permitem aos missionários se aterem estritamente a tais normas, necessário lhes é, porém, conservar o espírito de pobreza e de desprendimento. Colaboradores de quem veio evangelizar os pobres, devem os apóstolos de todos os tempos andar pobres entre os pobres, como Jesus; ricos, porém, da vocação recebida, ricos da Graça e do Espírito de Cristo. Se não for o Evangelho pregado assim – com desinteresse e dedicação total – não será aceito, não convencerá. Por seu lado, também os destinatários da Palavra de Deus têm deveres a cumprir: aceitá-la docilmente, reconhecer no profeta ou no apóstolo o enviado de Deus, prover com caridade às suas necessidades “porque merece o operário seu sustento” (Mt 10, 10). Quem repele e não quer ouvir os ministros do Senhor resiste à graça e fecha para si o caminho da salvação.

 

O católico não pode ficar indiferente e de braços cruzados diante de tanta frieza e indiferentismo. Aprendamos com Santo Hilário de Poitiers: “Quanto a mim, ó Pai, Deus onipotente, o primeiro dever de que tenho consciência é que todas as minhas palavras, todos os meus pensamentos, exprimem unicamente Deus! De   vós me vem o dom da palavra. Diversa ou maior alegria não posso buscar, do que a de vos servir e proclamar ao mundo, que a ignora, ao herege que a nega, esta verdade: sois o Pai, Pai, digo, do único Filho de Deus! Eis toda a minha ambição! No mais, imploro vosso auxílio, vossa misericórdia para enfunar as velas da nossa fé e da nossa profissão cristã ao sopro do Espírito Santo. Conduzi-nos ao largo, para melhor podermos anunciar vossa mensagem. Não falta à promessa quem disse: ‘Pedi e recebereis, buscai e  achareis, batei e abrir-se-vos-á’. Para isto, nos voltaremos para vós em nossa pobreza; com esforço tenaz examinaremos as palavras de vossos profetas, de vossos apóstolos; a todas as portas fechadas da inteligência, bateremos. A vós compete conceder o que pedimos, dar o que buscamos, abrir onde batemos”.

 

Dom Duarte Leopoldo comenta São Marcos 6, 7-13.

O desinteresse é a primeira virtude sacerdotal. Entretanto o operário merece o seu salário, diz o Salvador; o padre tem direito de receber dos fiéis o necessário para a sua honesta subsistência. – Acolher a um ministro sagrado é uma obra de fé, porque a sua dignidade o impede de frequentar casas suspeitas ou menos dignas do seu caráter.

Enviado de Deus, o apóstolo faz cair a paz do céu sobre aqueles que o recebem. E como a paz de Deus é um benefício tão inestimável que não se pode perder, reverterá em benefício do próprio padre, quando aqueles que o recebem não forem dignos desta benção. Quanto é grande a dignidade do sacerdote, mas também quanto é grande a sua responsabilidade!

Sacudir o pó dos sapatos, diz Santo Hilário, é uma espécie de excomunhão. Não receber o Evangelho é um crime diante de Deus, é desprezar o próprio Filho de Deus, é repelir os benefícios da Redenção. Para esses ingratos haverá mais rigor no dia do Juízo, do que para os habitantes das duas cidades incendiadas pelo fogo do céu.

 

O Pe. Francisco Fernández-Carvajal comenta São Marcos 6, 7-13.

Jesus escolhe os Apóstolos como seus representantes pessoais, e não apenas como seus mensageiros, profetas e testemunhas.

Esta nova identidade – atuar na pessoa de Cristo – deve manifestar-se numa vida simples e austera, santa. O Evangelho da Missa relata-nos que, quando Jesus enviou os Apóstolos para a primeira missão, recomendou-lhes que levassem para a caminhada um bastão e nada mais: nem pão, nem alforje, nem dinheiro no cinto...

Deus toma posse daquele que chamou ao sacerdócio, consagra-o para o serviço dos outros homens, seus irmãos, e confere-lhe uma nova personalidade. E este homem, eleito e consagrado ao serviço de Deus e dos outros, não o é somente em algumas ocasiões determinadas, por exemplo, quando realiza uma função sagrada, mas “sempre, em todos os momentos, tanto quando exerce o mais alto e sublime ofício como no ato mais vulgar e humilde da vida quotidiana. Exatamente da mesma maneira que um cristão não pode deixar de lado o seu caráter de homem novo, recebido no Batismo, para comportar-se ‘como se fosse’ um simples homem, também o sacerdote não pode abstrair do seu caráter sacerdotal para se comportar ‘como se’ não fosse sacerdote. Qualquer coisa que faça, qualquer atitude que tome, quer queira, quer não, será sempre a ação e a atitude de um sacerdote, porque ele o é sempre, em todas as horas e até à raiz do seu ser, faça o que fizer e pense o que pensar” (F. Suárez).

O sacerdote é um enviado de Deus ao mundo para que fale da sua salvação, e é constituído administrador dos tesouros de Deus: o Corpo e o Sangue de Cristo, bem como a graça de Deus por meio dos sacramentos, a palavra divina mediante a pregação, a catequese, os conselhos da Confissão. Está confiada ao sacerdote a mais divina das obras divinas, que é a salvação das almas; foi constituído embaixador e medianeiro entre Deus e os homens.

São Josemaría Escrivá escreve: “Saboreio a dignidade da finura  humana e sobrenatural destes meus irmãos espalhados por toda a terra. É de justiça   que se vejam rodeados já agora da amizade, da ajuda e do carinho de muitos cristãos. E quando chegar o momento de se apresentarem diante de Deus, Jesus Cristo ir-lhes-á ao encontro, para glorificar eternamente aqueles que, no tempo, atuaram em seu nome e na sua Pessoa, derramando com generosidade a graça da qual eram administradores”.

O Evangelho diz que tendo partido, pregavam às gentes que se convertessem, expulsavam muitos demônios, ungiam com óleo muitos doentes e curavam-nos... Os sacerdotes são também como que um prolongamento da Santíssima Humanidade de Cristo, pois através deles continuam a realizar-se nas almas os mesmos milagres que o Senhor realizou ao passar pela terra: os cegos vêem, os que não podiam andar recuperam as forças, os que morreram pelo pecado mortal renascem para a vida da graça pelo sacramento da Confissão...

O sacerdote não procura compensações humanas, nem honra pessoal, nem prestígio humano, nem mede o seu trabalho pelos critérios humanos deste mundo... Não é árbitro na partilha de heranças entre os homens, nem veio libertá-los das suas carências materiais – essa é uma tarefa de todos os homens de boa vontade -, mas veio trazer-nos a vida eterna, isto é que é especificamente seu; é também aquilo de que o mundo mais necessita.

Por isso temos que rezar tanto para que a Igreja conte sempre com os sacerdotes necessários, com sacerdotes que lutem por ser santos. Temos que rezar e fomentar essas vocações, se é possível, entre os membros da própria família, entre os filhos, entre os irmãos... Que imensa alegria para uma família se Deus a abençoa com este dom!

Todos os fiéis têm a gratíssima obrigação de ajudar os sacerdotes, especialmente com a oração: para que celebrem com dignidade a Santa Missa e dediquem muitas horas ao confessionário; para que tenham no coração a tarefa de administrar os sacramentos aos doentes e anciãos e cuidem com esmero da catequese; para que se preocupem com o decoro da Casa de Deus e sejam alegres, pacientes, generosos, amáveis, trabalhadores infatigáveis na missão de dilatar o Reino de Cristo. Ajudá-los-emos generosamente nas suas necessidades econômicas; procuraremos prestar-lhes a nossa colaboração naquilo que estiver ao nosso alcance.

 

 

Pe. Divino Antônio Lopes FP.

Anápolis, 08 de julho de 2009

 

                         

 

 

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Pe. Divino Antônio Lopes FP. “Começou a enviá-los dois a dois”

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