VISTES O AMADO DA MINHA ALMA?

(Ct 3, 1-11)

 

1 Em meu leito, pela noite, procurei o amado da minha alma. Procurei-o e não o encontrei! 2 Vou levantar-me, vou rondar pela cidade, pelas ruas, pelas praças, procurando o amado da minha alma... Procurei-o e não o encontrei!... 3 Encontraram-me os guardas que rondavam a cidade: ‘Vistes o amado da minha alma?’ 4 Passando por eles, contudo, encontrei o amado da minha alma. Agarrei-o e não vou soltá-lo, até levá-lo à casa da minha mãe, ao quarto da que me levou em seu seio.  5 Filhas de Jerusalém, pelas cervas e gazelas do campo, eu vos conjuro; não desperteis, não acordeis o amor, até que ele o queira!

6 Que é aquilo que sobe do deserto, como colunas de fumaça perfumada com incenso e mirra, e perfumes dos mercadores? 7 É a liteira de Salomão! Sessenta soldados a escoltam, soldados seletos de todo Israel. 8 São todos treinados na espada, provados em muitas batalhas. Vêm todos cingidos de espada, temendo surpresas noturnas. 9 O rei Salomão fez para si uma liteira com madeira do Líbano, 10 colunas de prata, encosto de ouro e assento de púrpura, forrada de ébano por dentro. 11 Ó filhas de Sião, vinde ver o rei Salomão, com a coroa que lhe pôs sua mãe no dia de suas bodas, dia em que seu coração se enche de alegria”.

 

Em Ct 3, 1-5 diz: “Em meu leito, pela noite, procurei o amado da minha alma. Procurei-o e não o encontrei! Vou levantar-me, vou rondar pela cidade, pelas ruas, pelas praças, procurando o amado da minha alma... Procurei-o e não o encontrei!... Encontraram-me os guardas que rondavam a cidade: ‘Vistes o amado da minha alma?’ Passando por eles, contudo, encontrei o amado da minha alma. Agarrei-o e não vou soltá-lo, até levá-lo à casa da minha mãe, ao quarto da que me levou em seu seio. Filhas de Jerusalém, pelas cervas e gazelas do campo, eu vos conjuro; não desperteis, não acordeis o amor, até que ele o queira!”

 

A ESPOSA está em seu leito esperando a visita do ESPOSO, cuja voz tem ouvido por alguns momentos; porém, ao terminar o ESPOSO sua cantiga de amor e de primavera, desaparece misteriosamente para semear mais inquietação e ciúmes em sua prometida. O novo desaparecimento é inexplicável para o coração da ESPOSA, que, depois de buscá-lo nas proximidades de sua casa, não o encontra.  Seu amor cego e obcecado pela ausência do seu prometido a força a lançar-se loucamente à rua buscando-o pelas praças durante a noite, justamente na hora em que as sentinelas fazem sua ronda em torno das muralhas. Sem mais preâmbulos, e na força do seu amor cego e obcecado, a futura ESPOSA lhes pergunta pelo seu ESPOSO, o que choca com todos os costumes convencionais, e mais com os orientais que defendem o recolhimento da mulher. Porém, o poeta nos apresenta esta cena para destacar o amor apaixonado e cego da ESPOSA, a qual não vacila em romper com todos os convencionalismos sociais para alcançar o que considera como único tesouro de seu coração: Vistes o amado da minha alma?

Sem dar detalhes, o poeta apresenta a ESPOSA já em companhia de seu ESPOSO. Aquela que venceu e que o levou à casa materna, onde ela mora, para unir-se no quarto da que a levou no seio. A mútua posse volta a fechar este segundo poema. No anterior, a ESPOSA era introduzida na câmara nupcial do ESPOSO. Agora, o ESPOSO é levado, ou melhor, arrastado para o quarto da casa materna da ESPOSA. O ESPOSO, ao ter em seus braços a ESPOSA, volta a implorar às companheiras dela – filhas de Jerusalém – não desperteis, não acordeis o amor, até que ele o queira!

Santo Afonso Maria de Ligório comenta Ct 3, 3: “Vistes o amado da minha alma?” É assim que a Virgem Maria, como a Esposa do Cântico dos Cânticos, andava perguntando por toda a parte sobre a perda do Menino Jesus no Templo. E depois, cansada pela fadiga, mas sem o ter achado. Com quanto maior ternura não terá dito o que disse Ruben de seu irmão: o menino não aparece, e eu para onde irei? (Gn 37, 30). O meu Jesus não aparece e eu não sei o que mais possa fazer para achá-lO; mas aonde irei sem o meu tesouro? Meu Filho dileto! Cara luz dos meus olhos: faze-me saber onde estás afim de que eu não ande mais errando e buscando-te em vão.

Santo Ambrósio explica Ct 3, 4: “Passando por eles, contudo, encontrei o amado da minha alma. Agarrei-o e não vou soltá-lo, até levá-lo à casa da minha mãe, ao quarto da que me levou em seu seio”Se quiseres possuir a Jesus Cristo, busque-O e não tenhas medo do sofrimento. Às vezes se encontra melhor a Jesus no meio dos suplícios corporais e nas próprias mãos dos perseguidores. Pois, passados breves instantes, te verás livre dos perseguidores e não estarás submetido aos poderes do mundo. Então Jesus Cristo sairá ao teu encontro e não permitirá que durante um longo tempo sejas tentado. Ao que busca a Cristo desta maneira e O encontra pode dizer: Agarrei-o e não vou soltá-lo, até levá-lo à casa da minha mãe, ao quarto da que me levou em seu seio. Qual é a casa de sua mãe e o seu quarto, senão o mais íntimo e secreto do teu ser? Guarda esta casa, limpa seus aposentos mais retirados, para que, estando a casa imaculada, o Espírito Santo habite nela. O que assim busca a Jesus Cristo, o que assim pede a sua ajuda não será nunca abandonado por Ele: mais ainda, será visitado por Ele com frequência; pois Ele estará conosco até o fim do mundo.

O Pontifício Instituto Bíblico de Roma ensina sobre Ct 3, 1-5: Também de noite e dormindo a Sulamita anela pelo seu amado. O não o ter encontrado na cidade, e sim fora, pois os guardas faziam a ronda sobre os muros, tem uma razão no contraste entre a vida campestre e a urbana.

São João da Cruz comenta Ct 3, 1-2: “Em meu leito, pela noite, procurei o amado da minha alma. Procurei-o e não o encontrei! Vou levantar-me, vou rondar pela cidade, pelas ruas, pelas praças, procurando o amado da minha alma... Procurei-o e não o encontrei!...” Bem dá a entender aqui a alma como, para achar deveras a Deus, não é suficiente rezar de coração e de boca; não basta ainda ajudar-se de benefícios alheios; mas é preciso, juntamente com isso, fazer de sua parte o que lhe compete. Maior valor costuma ter aos olhos de Deus uma só obra da própria pessoa, do que muitas feitas por outras em lugar dela. Por este motivo, lembrando-se a alma das palavras do Amado, - Buscai e achareis (Lc 11, 9), determina-se a sair ela mesma, do modo acima referido, para buscar o ESPOSO por obra, e não ficar sem achá-lo. Não faz como aqueles que não querem que lhes custem Deus mais do que palavras, e ainda menos, pois não são capazes de fazer, por amor de Deus, quase coisa alguma que lhes dê trabalho. Há alguns que nem mesmo se animam a levantar-se de um lugar agradável e deleitoso para contentar o Senhor; querem que lhes venham à boca e ao coração os sabores divinos, sem darem um passo na mortificação e renúncia de qualquer de seus gostos, consolações ou quereres inúteis. Tais pessoas, porém, jamais acharão a Deus, por mais que O chamem a grandes vozes, até que se resolvam a sair de si para buscá-lo. Assim o procurava a Esposa nos Cântico dos Cânticos, e não O achou enquanto não saiu a buscá-lo, como diz por estas palavras: Em meu leito, pela noite, procurei o amado da minha alma. Procurei-o e não o encontrei! Vou levantar-me, vou rondar pela cidade, pelas ruas, pelas praças, procurando o amado da minha alma... Procurei-o e não o encontrei!... (Ct 3, 1-2). E depois de haver sofrido alguns trabalhos, diz então que O achou... A alma que busca a Deus, querendo permanecer em seu gosto e descanso, de noite O busca, e, portanto, não O achará; mas a que O buscar pelas obras e exercícios de virtudes, deixando à parte o leito de seus gostos e deleites, esta, sim, O achará, pois O busca de dia. De fato, o que de noite não se percebe, de dia aparece. Esta verdade é bem declarada pelo ESPOSO no livro da Sabedoria, quando diz: Clara é a sabedoria e nunca se murcha, e facilmente é vista por aqueles que a amam, e encontrada pelos que buscam. Antecipa-se aos que a desejam, de tal sorte que se lhes patenteia primeiro. Aquele que vela desde manhã para a possuir não terá trabalho, porque a encontrará sentada à sua porta (Sb 6, 13-15). Estas palavras mostram como, em saindo a alma da casa de sua própria vontade, e do leito de seu próprio gosto, ao acabar de sair, logo achará ali fora a Sabedoria divina que é o Filho de Deus, seu ESPOSO.

O mesmo Santo explica Ct 3, 4: “Passando por eles, contudo, encontrei o amado da minha alma”. Não se pode chegar a tal união sem grande pureza, e esta pureza não se alcança sem grande desapego de toda coisa criada e sem viva mortificação. Tudo isto é significado pelo despir do manto à ESPOSA e pelas chagas que lhe foram feitas na noite, quando buscava e pretendia o ESPOSO: pois o novo manto do desposório (casamento) ao qual aspirava, não o podia a ESPOSA vestir, sem despir primeiro o velho. Quem recusar, portanto, sair na noite já referida para buscar o Amado, e não quiser ser despido de sua vontade nem mortificar-se, mas pretender achá-lo no seu próprio leito e comodidade, como fazia antes a ESPOSA, jamais chegará a encontrá-lo.

Esse Santo ensina também sobre Ct 3, 4: “Agarrei-o e não vou soltá-lo”. Neste degrau de união, a alma satisfaz seu desejo, mas não ainda de modo contínuo. Algumas, apenas chegam a pôr o pé neste degrau, logo volvem a tirá-lo. Se durasse sempre a união, seria, já nesta vida, uma espécie de glória para a alma; e assim, não pode permanecer neste degrau senão por breves tempos.

São João da Cruz comenta também Ct 3, 2: “Vou levantar-me, vou rondar pela cidade, pelas ruas, pelas praças, procurando o amado da minha alma...” A expressão levantar-se a alma ESPOSA, empregada no Cântico dos Cânticos, significa, em sentido espiritual, elevar-se de baixo para cima. Isto mesmo quer dizer aqui a alma com o termo sair, isto é, abandonar seu modo rasteiro de amar, para subir ao elevado amor de Deus.

O mesmo Santo explica Ct 3, 5: “Filhas de Jerusalém, pelas cervas e gazelas do campo, eu vos conjuro; não desperteis, não acordeis o amor, até que ele o queira!” A fim de que, diz ele, mais a seu gosto se deleite a ESPOSA nesta quietação e suavidade de que goza em seu Amado. Convém notar aqui como, neste tempo, já não há porta fechada para a alma; está em suas mãos gozar à sua vontade, quando quer e quanto quer, deste suave sono de amor, conforme o dá a entender o ESPOSO no Cântico dos Cânticos: Filhas de Jerusalém, pelas cervas e gazelas do campo, eu vos conjuro; não desperteis, não acordeis o amor, até que ele o queira! (Ct 3, 5).

 

Em Ct 3, 6-11diz: “Que é aquilo que sobe do deserto, como colunas de fumaça perfumada com incenso e mirra, e perfumes dos mercadores? É a liteira de Salomão! Sessenta soldados a escoltam, soldados seletos de todo Israel. São todos treinados na espada, provados em muitas batalhas. Vêm todos cingidos de espada, temendo surpresas noturnas. O rei Salomão fez para si uma liteira com madeira do Líbano, colunas de prata, encosto de ouro e assento de púrpura, forrada de ébano por dentro. Ó filhas de Sião, vinde ver o rei Salomão, com a coroa que lhe pôs sua mãe no dia de suas bodas, dia em que seu coração se enche de alegria”.

 

Este fragmento parece não pertencer ao texto original do livro, pois não menciona nem o ESPOSO nem a ESPOSA, e ainda a métrica (estrofe de um poema) é diferente. Tem tudo para ser uma incrustação poética de algum escriba que tentou incorporar o nome de Salomão ao maravilhoso conjunto poético do Cântico dos Cânticos.

O poeta descreve um maravilhoso cortejo nupcial que avança no meio de uma coluna de fumaça proveniente da queimação dos perfumes mais extraordinários, justamente da parte do deserto, para fazer entrada no palácio real. No centro vai a liteira (cadeira portátil) de Salomão, escoltada por sessenta valentes entre os mais seletos de juventude militar de Israel, com suas espadas desembainhadas para proteger-lhe contra todo ataque noturno. O cortejo se dirige para o palácio de Salomão, no qual o suntuoso rei construíra uma câmara nupcial com as madeiras mais seletas do Líbano, recobertas de prata suas colunas, e com o baldaquino deslumbrante de ouro sobre um assento de púrpura, recamado, presente das bodas das filhas de Jerusalém, as donzelas que acompanham o cortejo nupcial.

O poeta convida as donzelas de Sião a contemplarem o maravilhoso cortejo e a fazerem parte das festas nupciais de Salomão. É o dia em que recebe a coroa que lhe pôs sua mãe no dia de suas bodas, o reconhecimento do seu novo estado de matrimônio, sua independência da casa materna, para ser “rei” da casa mais deslumbrante.  O poeta joga com as tradições do palácio de Salomão para criar uma cena do cortejo nupcial e incorporá-lo ao conjunto do Cântico dos Cânticos. O nome de Salomão pode ser um puro artifício literário para ponderar a suntuosidade do cortejo falso (Os alegoristas veem nesta cena um translado da arca ao templo de Jerusalém).

EUNSA explica Ct 3, 6-11: O poema apresenta a amada, majestosa, que sobe desde o deserto, acompanhada pelo rei Salomão. Os versos se podem ler como uma metáfora da aliança esponsal de Deus, o Rei de Israel, com seu povo na época da restauração. Assim o expressava o livro do profeta Isaías: Serás uma coroa gloriosa nas mãos de Deus, um turbante real na palma do teu Deus. Já não te chamarão “Abandonada”, nem chamarão à tua terra “Desolação”. Antes, serás chamada “Meu prazer está nela”, e tua terra, “Desposada”. Com efeito, Deus terá prazer em ti e se desposará com a tua terra. Como um jovem desposa uma virgem, assim te desposará o teu edificador. Como a alegria do noivo pela sua noiva, tal será a alegria que o teu Deus sentirá em ti (Is 62, 3-5). Se antes o ESPOSO era pastor, agora é o rei. Porém, na leitura alegórica representam a Deus. Por ele, os escritores sagrados fizeram destas metáforas pedagógicas para tratar a Deus que quando quer ser temido, se chama Senhor; quando quer ser honrado, Pai; e quando quer ser amado, Esposo.

O Pontifício Instituto Bíblico de Roma ensina sobre Ct 3, 6-11: Uma voz ou um coro pinta com cores cintilantes o esplendor da corte de Salomão, para despertar na Sulamita o desejo de se entregar a ele, mas em vão.

São João da Cruz comenta Ct 3, 7-8: “Sessenta soldados a escoltam, soldados seletos de todo Israel. São todos treinados na espada, provados em muitas batalhas. Vêm todos cingidos de espada, temendo surpresas noturnas”. Essa paz, nem o mundo nem o demônio lhe podem dar ou tirar; e a alma sente então a verdade do que diz a ESPOSA, a este propósito, no Cântico dos Cânticos: Sessenta soldados a escoltam, soldados seletos de todo Israel. São todos treinados na espada, provados em muitas batalhas. Vêm todos cingidos de espada, temendo surpresas noturnas. Tal é a fortaleza e paz de que goza, embora muitas vezes sinta exteriormente tormentos na carne e nos ossos. Os escudos são aqui os dons e virtudes da alma. Embora tenhamos dito que são flores, também lhe servem agora de coroa e prêmio, pelo trabalho que teve em conquistá-las. Muito mais ainda, vêm a servir-lhe, ao mesmo tempo, de defesa, quais fortes escudos, contra os vícios aniquilados pelo exercício delas. Por esta razão, o leito florido da ESPOSA, com as virtudes por coroa e proteção, acha-se não só coroado para recompensa da mesma ESPOSA, mas protegido por elas como por fortes escudos. Acrescenta a alma que estes escudos são de ouro, querendo manifestar assim o valor imenso das Virtudes. A ESPOSA no Cântico dos Cânticos diz a mesma coisa por outras palavras: É a liteira de Salomão! Sessenta soldados a escoltam, soldados seletos de todo Israel (Ct 3, 7). Em dizer o verso que os escudos são em número de mil (em outra tradução bíblica), dá a entender a grande cópia das virtudes, graças e dons com que Deus enriquece a alma neste estado.

O mesmo Santo explica Ct 3, 10: “... colunas de prata, encosto de ouro e assento de púrpura, forrada de ébano por dentro”. A caridade dá valor às outras virtudes, fortalecendo-as e avigorando-as para proteger a alma; dá também graça e gentileza, para com elas agradar ao Amado, pois sem a caridade nenhuma virtude é agradável a Deus. É esta a púrpura de que fala o livro Cântico dos Cânticos, sobre a qual Deus se recosta (Ct 3, 10). Com esta libré (uniforme usado pelos empregados nas casas nobres) vermelha vai a alma vestida, quando, na noite escura, sai de si mesma e de todas as coisas criadas, de amor em vivas ânsias inflamada, subindo esta secreta escada de contemplação, até a perfeita união do amor de Deus, sua salvação tão desejada. Tal é o disfarce usado pela alma na noite da fé, subindo pela escada secreta, e tais são as três cores de sua libré. São elas convenientíssimas disposição para se unir com Deus segundo suas três potências: entendimento, memória e vontade. A fé esvazia e obscurece o entendimento de todos os seus conhecimentos naturais, dispondo-o assim à união com a sabedoria divina; a esperança esvazia e afasta a memória de toda posse de criatura, porque, como São Paulo diz, a esperança tende ao que não se possui (Rm 8, 24), e por isto aparta a memória de tudo quanto pode possuir, a fim de a colocar no que espera. Deste modo, a esperança em Deus só dispõe puramente a memória para a união divina. E, enfim, a caridade, de maneira semelhante, esvazia e aniquila as afeições e apetites da vontade em qualquer coisa que não seja Deus, e os põe só nele.  Assim, também, esta virtude dispõe essa potência, e a une com Deus por amor. Como, pois, estas virtudes têm ofício de apartar a alma de tudo que é menos do que Deus, consequentemente têm o de uni-la com Deus. Se, portanto, a alma não caminha verdadeiramente vestida com o traje destas três virtudes, é impossível chegar à perfeita união com Deus por amor. Logo, para alcançar o que pretendia, isto é, a amorosa e deleitosa união com seu Amado, foi muito necessário e conveniente este traje e disfarce que tomou. Foi, do mesmo modo, grande ventura o conseguir vesti-lo, perseverar com ele até alcançar tão desejada pretensão e fim, qual era a união de amor. Pela púrpura é simbolizada, na Sagrada Escritura, a caridade. Serve também aos reis para suas vestes. Afirma aqui a alma estar o seu leito estendido em púrpura, porque todas as virtudes, riquezas e bens nele contidos estão fundados na caridade do Rei celestial, e só nesta caridade se sustentam e florescem proporcionando gozo.  Sem este amor, jamais poderia ela gozar deste feito e destas flores. De fato, todas as virtudes estão na alma como estendidas no amor de Deus, único receptáculo conveniente para bem conservá-las, e se acham como banhadas em amor. Todas e cada uma delas, efetivamente, estão sempre enamorando a alma de Deus, e em todas as obras e ocasiões levam-na amorosamente a maior amor de Deus; Tal é a significação do leito em púrpura estendido. No Cântico dos Cânticos temos disso a expressão exata, naquela liteira que Salomão fez para si, a qual era de madeira do Líbano, com colunas de prata e reclinatório de ouro, e os degraus de púrpura, ordenando tudo com a caridade (Ct 3, 9-10). As virtudes e dotes com que Deus constrói este leito da alma, - significados pela madeira do Líbano e as colunas de prata, - têm seu reclinatório ou encosto no amor, simbolizado pelo ouro; pois, como já dissemos, as virtudes se firmam e conservam no amor. Todas elas se ordenam e exercitam mediante a mútua caridade de Deus e da alma.

Esse Santo explica ainda Ct 3, 11: “Ó filhas de Sião, vinde ver o rei Salomão, com a coroa que lhe pôs sua mãe no dia de suas bodas, dia em que seu coração se enche de alegria”. Este versinho se aplica com muita propriedade à Igreja e a Cristo, e nele é a Igreja sua Esposa que lhe diz assim: faremos as grinaldas. Nestas são significadas todas as almas santas, geradas por Cristo na Igreja; cada uma é como uma grinalda, ornada de flores de virtudes e dons, e todas juntas formam como uma grinalda para a cabeça do ESPOSO, Cristo. Podemos também entender por estas formosas grinaldas, as que por outro nome se chama auréolas, feitas igualmente em Cristo e na Igreja, e são de três qualidades: a primeira, de lindas e níveas flores, que são todas as almas virgens, cada uma com a sua auréola de virgindade, as quais, unidas juntamente, serão uma só auréola para coroar o ESPOSO Cristo; a segunda, de resplandecentes flores, formada pelos santos doutores, os quais todos unidos formam outra auréola para sobrepor à das virgens, na cabeça de Cristo; a terceira, de rubros cravos que são os mártires, cada um, também, com sua auréola de mártir, e todos, reunidos em conjunto, tecerão a auréola para completar a do ESPOSO Cristo; e, assim, com essas três grinaldas ficará ele tão aformoseado e gracioso à vista, que no céu serão ditas as palavras da ESPOSA do Cântico dos Cânticos: Ó filhas de Sião, vinde ver o rei Salomão, com a coroa que lhe pôs sua mãe no dia de suas bodas, dia em que seu coração se enche de alegria (Ct 3, 11). Causa, pois, admiração contemplar este amoroso Pastor e ESPOSO da alma, tão satisfeito e feliz em vê-la já conquistada e perfeita, posta em seus ombros, presa por suas mãos, nesta desejada junta e união. Este gozo, não o guarda o Amado só para si; faz dele participantes os anjos e as almas santas, dizendo-lhes como o Cântico dos Cânticos: Ó filhas de Sião, vinde ver o rei Salomão, com a coroa que lhe pôs sua mãe no dia de suas bodas, dia em que seu coração se enche de alegria (Ct 3, 11). Nestas palavras chama ele à alma sua coroa, sua ESPOSA e alegria de seu coração, trazendo-a já nos seus braços, e agindo com ela como ESPOSO do seu tálamo.

 

Pe. Divino Antônio Lopes FP (C)

Anápolis, 12 de julho de 2015

 

 

Bibliografia

 

Sagrada Escritura

EUNSA

Pe. Maximiliano Garcia Cordero, Bíblia Comentada

Santo Ambrósio, De virginitate 12, 68. 74-75; 13, 77-78

São Gregório de Nissa, Super Cantica Canticorum, Prol.

Santo Afonso Maria de Ligório, Meditações

São João da Cruz, Obras Completas

Pontifício Instituto Bíblico de Roma

 

 

 

 

Este texto não pode ser reproduzido sob nenhuma forma; por fotocópia ou outro meio qualquer sem autorização por escrito do autor Pe. Divino Antônio Lopes FP.
Depois de autorizado, é preciso citar:
Pe. Divino Antônio Lopes FP. “Vistes o amado da minha alma?”

www.filhosdapaixao.org.br/escritos/comentarios/escrituras/escritura_0527.htm