É IMPOSSÍVEL...

(Hb 6, 4-6)

 

4 De fato, os que uma vez foram iluminados – que saborearam o dom celeste, receberam o Espírito Santo, 5 experimentaram a beleza da palavra de Deus e as forças do mundo que há de vir – 6 e, não obstante, decaíram, é impossível que renovem a conversão uma segunda vez, porque da sua parte crucificam novamente o Filho de Deus e o expõem às injúrias”.

 

Católico, como é difícil converter uma pessoa que conheceu a verdade e depois voltou para a lama do mundo: “Mais fácil é converter pagãos e implantar em seu meio costumes cristãos, do que levar cristãos relaxados ao cumprimento do seu  dever” (Pe. João Batista Lehmann).

Tem razão São Paulo quando diz: “De fato, os que uma vez foram iluminados – que saborearam o dom celeste, receberam o Espírito Santo, experimentaram a beleza da palavra de Deus e as forças do mundo que há de vir – e, não obstante, decaíram, é impossível que renovem a conversão uma segunda vez, porque da sua parte crucificam novamente o Filho de Deus e o expõem às injúrias” (Hb 6, 4-6).

VV. 4-6. No contexto de uma exortação à fidelidade e à exigência de tender ao mais perfeito, adverte-se com palavras duras o perigo da infidelidade. Com efeito, há uma grande dificuldade para que um apóstata volte à verdadeira fé. É muito difícil que mudem as suas disposições pessoais e também que alguém saiba encontrar palavras que o possam remover, já que teve conhecimento da verdade e a rejeitou voluntariamente. Mas não é impossível, pois a misericórdia de Deus é infinita, como demonstra o episódio das negações de Simão Pedro e do seu arrependimento: “Assim como nas doenças do corpo nenhuma situação é mais perigosa que a daqueles que têm uma recaída, assim no espiritual, se alguém cai no pecado depois de ter recebido a graça é mais difícil que se levante para fazer o bem” (Santo Tomás de Aquino).

Para entender bem estas expressões, tão enérgicas e exigentes, há que ter em conta que os cristãos da primeira hora tinham um conceito altíssimo da dignidade da sua chamada. É impossível ser cristãos de verdade e pactuar ao mesmo tempo com o pecado: mais ainda se se trata de um pecado de apostasia que leva consigo a negação da fé e corta, portanto, as próprias raízes da nossa salvação. Por outro lado, os primeiros destinatários da carta pareciam estar rodeados de um ambiente hostil: tiveram que sofrer a rejeição da sociedade na qual vivem, tiveram que renunciar a certas práticas religiosas judaicas que tinham aprendido de pequenos, vivem isolados e desprezados. A tentação de ceder é grande. Por isto recorda-lhes, em primeiro lugar, os dons outorgados com o chamamento ao Cristianismo: foram “iluminados”, ou seja, receberam o Batismo, “que é o princípio da regeneração espiritual, na qual o entendimento é iluminado pela fé” (Idem.); Deus deu-lhes também a luz do Evangelho; foram cumulados com o “dom celestial”, ou seja, o próprio Espírito Santo que enche de doçura (cfr l Pd 2, 3; Sl 34,9), foram alimentados com a Eucaristia e experimentaram a suavidade da Boa Nova e a força que tem o Reino de Deus com todos os seus dons: a filiação divina, a alegria, o gozo, o agradecimento, a fé, a esperança e a caridade que são o começo da vida eterna.

A situação a que faz referência o v. 6 indica uma queda ruinosa, parecida com a de Adão (cfr Rm 5,15-20). Talvez se assemelhe ao pecado contra o Espírito Santo, do qual o próprio Senhor afirmou que não seria perdoado nem neste século nem no futuro (cfr Mt 12,31-32; Mc 3, 28-29; Lc 12,10); a sua expressão recorda a de São Pedro, que afirmava que os apóstatas eram como o cão que volta ao seu vômito ou a porca lavada que se rebola no barro: a sua situação posterior é pior que a primeira (cfr 2 Pd  2,20-22). Como um hábil pregador, o escritor sagrado quer fazer ver todo o horror que leva consigo a rejeição da fé.

Não faltaram hereges (montanistas e novacianos) que quiseram utilizar este texto para defender que existem pecados que a Igreja não pode perdoar, em concreto os pecados de homicídio, adultério e apostasia. Mas negar à Igreja este poder equivale a negar o sacramento da Penitência. Por isto, todos os Padres foram contra este rigorismo que, quase sempre, desemboca num laxismo desenfreado. São João Crisóstomo argumenta do seguinte modo: “Não existe penitência!’, — dizem eles. — Não há dúvida que existe penitência! O que não existe é um segundo Batismo. Existe a Penitência, que possui uma grande força, e que pode libertar do peso dos pecados, mesmo o que está submerso profundamente neles, desde que queira; e que pode pôr totalmente a salvo o que está em perigo, ainda que tenha chegado ao abismo da maldade (...). Cristo, se queremos, pode ser formado de novo em nós. Escuta o que diz Paulo: ‘Meus filhinhos, pelos quais sofro de novo dores de parto, até que Cristo seja formado de novo em vós’. Basta, pois, que nos agarremos à Penitência. Olha a benignidade de Deus! (...). ‘Caímos de novo!’ Mas nem sequer então nos castigou, mas deu-nos o remédio da Penitência, que basta para destruir e eliminar todos os nossos pecados, desde que saibamos que espécie de remédio é esta e como deve ser aplicada”. A misericórdia de Deus acolhe sempre o pecador que acorre arrependido ao sacramento da Penitência, por muitos e graves que tenham sido os seus pecados.

V. 6. Que renovem a conversão uma segunda vez: A frase quer indicar que a renovação interior se dirige e desemboca no arrependimento e na mudança de vida. Está a descrever a situação do homem que, movido pela graça interior e pela pregação externa, dá os primeiros passos na via do arrependimento.

Mais difícil ainda é desentranhar o conteúdo profundo da segunda parte do versículo: “Porque da sua parte crucificam novamente o Filho de Deus e o expõem às injúrias”. Muitos Padres e teólogos vêem aqui a impossibilidade de voltar a batizar-se, porque no Batismo participamos dos frutos da Paixão e Morte de Cristo (cfr Rm 6,3-6; l Cor 1,13). Se os apóstatas pretendessem ser batizados de novo para alcançar o perdão, estariam a pedir em certo modo que Cristo voltasse a ser crucificado. Mas Cristo já não pode morrer, logo a repetição do Batismo é impossível. Assim, por exemplo, afirma Santo Tomás de Aquino: “Quando diz ‘crucificando de novo’, etc., explica a razão por que o Batismo não se repete, ou seja, porque o Batismo é uma espécie de conformação com a morte de Cristo, como resulta de Rom 6,3 — ‘todos fomos batizados’ —, e esta não se repete porque ‘Cristo, ressuscitado de entre os mortos, já não morre mais’ (Rom 6,9). Logo os que quisessem batizar-se de novo, queriam voltar a crucificar Cristo”.

Sem excluir este sentido, parece mais natural pensar com outros Padres que os pecadores desprezam a Penitência mais que o Batismo, já que também a Penitência nos limpa pelos méritos da Paixão de Cristo. Em última análise, a frase diz que os apóstatas são pecadores que, como todo o pecador, são causa da Paixão e Morte de Cristo e que, enquanto permanecem obstinados, voltam a crucificá-Lo e a escarnecê-Lo por sua conta, porque desprezam os frutos da Paixão do Senhor; por isso não podem alcançar o arrependimento nem o perdão. Santo Tomás de Aquino comenta: “Os que pecam depois do Batismo voltam a crucificar Cristo, enquanto depende deles, já que Cristo morreu de uma vez para sempre pelos nossos pecados. Tu, que estás batizado e pecas, fazes que Cristo seja crucificado de novo na medida da tua capacidade, e que assim se escarneça de Cristo, pois te voltas a manchar depois de ter sido limpado pelo Seu sangue”.

Rezemos com devoção: “Meu Deus, fazei de mim o que quiserdes. Quero aceitar, para vos agradar, todos os sofrimentos que quiserdes me mandar: doenças, dores, angústias, desprezos, pobreza, perseguições e desolações. Tudo aceito para vos agradar. Aceito também a morte que me preparastes com todas as angústias e sofrimentos que a acompanharão. Basta que me dais a graça de vos amar muito! Ajudai-me, dai-me forças para compensar com um grande amor nesta vida que me resta, os desgostos que vos causei no passado” (Santo Afonso Maria de Ligório).

 

Pe. Divino Antônio Lopes FP.

Anápolis, 11 de outubro de 2010

 

Bibliografia

 

Sagrada Escritura

Pe. João Batista Lehmann, Euntes... Praedicate!

Edições Theologica

Santo Tomás de Aquino, Comentário sobre Heb, ad loc

São João Crisóstomo, Hom. sobre Heb, 6

Pe. Lorenzo Turrado, Bíblia comentada

Pe. Miguel Nicolau, A Sagrada Escritura

 

 

 

 

 

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